Únicos indicados por Bolsonaro ao STF votam contra direitos indígenas e pautas climáticas. Os demais ministros, a favor

Entenda os motivos que fizeram com que os outros nove magistrados da Corte máxima de Justiça do Brasil votassem para rejeitar a tese do Marco Temporal

Vou continuar até quando meu corpo resistir. Estamos unidos para defender o povo e a terra”, declarou Raoni, em entrevista à Amazônia Real | Foto de Kamikia Kisedje / Cobertura Colaborativa

No início do ano de 2020,  o líder indígena brasileiro da etnia caiapó, conhecido internacionalmente por sua luta pela preservação da Amazônia e dos povos indígenas, Raoni, afirmou em entrevista ao portal ‘Amazônia Real‘: “Não vou desistir, vou continuar até quando o meu corpo resistir. Se o homem branco insistir em cortar floresta, fazer barragem em rio, garimpo e destruir tudo, vou continuar aqui, lutando”.

Mais de três anos depois, a tese do marco temporal, que restringia a demarcação de terras indígenas e enfraquecia seus direitos, foi finalmente barrada pelo STF (Supremo Tribunal Federal).

Na quarta-feira (20/9), a Corte rejeitou a proposta pelo placar de 9 a 2, o que representou uma vitória não apenas para as populações indígenas, mas também para o Brasil, por seu alinhamento com as pautas internacionais sobre preservação do meio ambiente.

Os dois ministros que votaram em favor do marco temporal foram Kassio Nunes Marques e André Mendonça, ambos indicados pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).

O projeto determinava que somente poderiam ser objeto de demarcação as terras que eram efetivamente ocupadas por povos indígenas em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição.

A rejeição da PL é derrota para a bancada ruralista, mas uma vitória da agenda dos direitos dos povos indígenas, em alinhamento com as pautas defendidas pelo governo do Presidente da República Federativa do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que criou o Ministério dos Povos Indígenas, a primeira pasta destinada a cuidar exclusivamente das demandas dos indígenas no Brasil.

A ministra Sônia Guajajara, disse, na ocasião da aprovação do texto da PL Projeto de Lei 490/2007, que aquilo era um “genocídio legislado”. Em 30 de junho, o projeto do marco temporal para a demarcação de terras indígenas recebeu 283 votos favoráveis, 155 contrários e uma abstenção.

Entre outras disposições, o texto previa permitir que o poder público instalasse em terras indígenas equipamentos, redes de comunicação e estradas, além das construções necessárias à prestação de serviços públicos, especialmente os de saúde e educação.

O projeto também estabelecia que as regras já valeriam para processos administrativos de demarcação de terras indígenas ainda não concluídos.

A Carta Magna não reconhece um fator temporal como um limite para as demarcações, mas deputados favoráveis ao PL, entre os quais encontram-se integrantes da bancada ruralista, argumentam que as demarcações ameaçam o estoque de terras produtivas no país.

Riscos do Marco Temporal

No mês seguinte à aprovação do PL na Câmara, a doutora Helena Salim de Castro apontou os riscos que isso poderia gerar, caso o STF não o derrubasse:

Seria “mais um golpe contra o direito dos povos indígenas e contra a proteção do meio ambiente“, especialmente por permitir “a flexibilização do contato com os povos isolados e a não expansão dos territórios já demarcados”.

Castro é doutora em Relações Internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp, PUC-SP), co-coordenadora do Núcleo de Estudos de Gênero, que é vinculado ao Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional, e que pesquisa a violência de gênero contra mulheres indígenas.

Ainda segundo a doutora, a “câmara de populações indígenas e comunidades tradicionais do Ministério Público Federal” já havia afirmado que “o Projeto de Lei 490” era “inconstitucional“, porque contrapunha “a Constituição Federal, e também normativas e convenções internacionais ratificadas pelo governo brasileiro“.

Na Constituição Federal, a posse e o usufruto das terras pelos indígenas tem um caráter tradicional e essa tradicionalidade é um elemento cultural, e não temporal. Além desse desrespeito, dessa inconstitucionalidade o PL também não considera a necessidade aos povos indígenas, descumprindo assim a convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho”, criticou a pesquisadora, na ocasião.

Além do debate no plano das leis, Salim sinalizou que o PL 490 ignorava toda a história de colonização e de violência do Brasil. E que o modo de vida de alguns grupos desses povos indígenas eram vistos como atrasados, suas crenças como inferiores e seus corpos como descartáveis.

Recentemente, acompanhamos um conjunto de denúncias e de relatos sobre violações sexuais contra mulheres indígenas do povo Yanomami. Essas denúncias refletem um pouco o modo como esses grupos são vistos de forma geral pela sociedade. Nesse sentido, o projeto representa um passo no histórico processo de invisibilização de povos indígenas e de imposição de uma visão de mundo e de projeto de desenvolvimento que é levado pelo sujeito branco ocidental que busca com esse projeto a exploração dos recursos naturais e também se sustenta em um entendimento de que a natureza está a serviço dos homens, para ser explorada e mercantilizada”, disse em junho.

No entanto, a relação de muitos povos indígenas com a terra e o território vai além da ocupação física e do uso de recursos. Há um vínculo cultural ancestral e comunitário. Para muitas dessas etnias, o território é um espaço em que a memória é preservada e as práticas vividas em coletividade. A relação com a natureza, a flora e a fauna em muitos casos não é vista como uma relação hierárquica. Para muitos desses povos há uma relação de complementaridade“, acrescentou, Castro.

A PL representaria, além de uma “ameaça à vida material e física desses povos, também a todo o país que depende da preservação desses territórios. E, além da vida material e física, existe uma ameaça à própria cultura e à memória desses povos. E também, de uma maneira geral, a história do nosso país, que é uma história composta por diferentes grupos, diferentes povos dentro do mesmo território”, observou Salim Castro.

Segundo a pesquisadora, o atual governo “se elegeu muito devido ao apoio de ambientalistas, de movimentos indígenas e de grande parcela da população que já não aceitava o desmonte promovido pelo governo anterior. Nós vemos aqui novamente que não é uma surpresa total que a balança pese mais para o lado dos projetos de exploração do que para pautas ambientais e de proteção dos direitos indígenas. Será um desafio enorme”.

Salim disse que, atualmente, há uma mobilização nacional e internacional mais ampla em defesa destas pautas. Porém, a mudança social segue mais lenta no Brasil.

Há uma pressão e existe essa necessidade de acompanhar como serão conduzidas na prática as pautas ambientais e as pautas referentes aos direitos dos povos indígenas. Isto é, o quanto o atual governo conseguirá alinhar essas pautas com as demandas de progresso, demandas de desenvolvimento. Se olharmos para os nossos vizinhos, por exemplo, a Bolívia e o Equador foram países que viveram experiências de mudanças muito mais profundas em relação a essas pautas. Principalmente a pauta dos povos indígenas, onde foram construídas novas constituições baseadas no conceito de bem viver”, disse também.

Aqui no Brasil, essas mudanças ainda são muito mais tímidas; não ocorreram de fato. Então, o desafio do governo, de alinhar esses dois lados, será muito maior. Terá de mostrar que uma das pautas que o elegeu, a criação do Ministério dos Povos Indígenas, não foi apenas uma narrativa, e que irão gerar mudanças na nossa relação com o território, com os povos indígenas e com o meio ambiente”, finalizou a doutora.

Após as afirmações da doutora, em junho, transcritas do ‘Jornal da Unesp‘, o Supremo derrubou a PL, em 21 de setembro.



O Supremo Tribunal Federal (STF) rejeitou, nesta quinta-feira (21), a tese do marco temporal para a demarcação de terras indígenas.

Por 9 votos a 2, o Plenário decidiu que a data da promulgação da Constituição Federal (5/10/1988) não pode ser utilizada para definir a ocupação tradicional da terra por essas comunidades.

A decisão foi tomada no julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 1017365, com repercussão geral (Tema 1.031).

Na próxima quarta-feira (27), o Plenário fixará a tese que servirá de parâmetro para a resolução de, pelo menos, 226 casos semelhantes que estão suspensos à espera dessa definição.

O julgamento começou em agosto de 2021 e é um dos maiores da história do STF.

Ele se estendeu por 11 sessões, as seis primeiras por videoconferência, e duas foram dedicadas exclusivamente a 38 manifestações das partes do processo, de terceiros interessados, do advogado-geral da União e do procurador-geral da República.

A sessão foi acompanhada por representantes de povos indígenas no Plenário do STF e em uma tenda montada no estacionamento ao lado do Tribunal.

Após o voto do ministro Luiz Fux, o sexto contra a tese do marco temporal, houve cantos e danças em comemoração à maioria que havia sido formada.

Ancestralidade

Primeiro a votar nesta tarde, o ministro Luiz Fux argumentou que, quando fala em terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas, a Constituição se refere às áreas ocupadas e às que ainda têm vinculação com a ancestralidade e a tradição desse povos. Segundo ele, ainda que não estejam demarcadas, elas devem ser objeto da proteção constitucional.

Direitos fundamentais

Ao apresentar seu voto, a ministra Cármen Lúcia ressaltou que a Constituição Federal, ao traçar o estatuto dos povos indígenas, assegurou-lhes expressamente a manutenção de sua organização social, seus costumes, línguas, crenças e tradições e os direitos sobre as terras tradicionalmente ocupadas.

Para a ministra, a posse da terra não pode ser desmembrada dos outros direitos fundamentais garantidos a eles.

Ela salientou que o julgamento trata da dignidade étnica de um povo que foi oprimido e dizimado por cinco séculos.

Critérios objetivos

O ministro Gilmar Mendes também afastou, em seu voto, a tese do marco temporal, desde que assegurada a indenização aos ocupantes de boa-fé, inclusive quanto à terra nua.

Segundo ele, o conceito de terras tradicionalmente ocupadas por indígenas, que baliza as demarcações, deve observar objetivamente os critérios definidos na Constituição e atender a todos.

Posse tradicional

Última a votar, a presidente do STF, ministra Rosa Weber, afirmou que a posse de terras pelos povos indígenas está relacionada com a tradição, e não com a posse imemorial.

Ela explicou que os direitos desses povos sobre as terras por eles ocupadas são direitos fundamentais que não podem ser mitigados.

Destacou, ainda, que a posse tradicional não se esgota na posse atual ou na posse física das terras.

Ela lembrou que a legislação brasileira tradicionalmente trata de posse indígena sob a ótica do indigenato, ou seja, de que esse direito é anterior à criação do Estado brasileiro.

O julgamento foi acompanhado por representantes de povos indígenas no Plenário do STF e em uma tenda montada ao lado do Tribunal.

Após o voto do ministro Luiz Fux, o sexto contra a tese do marco temporal, houve cantos e danças em comemoração à maioria que havia sido formada.

Caso concreto

O caso que originou o recurso está relacionado a um pedido do Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina (IMA) de reintegração de posse de uma área localizada em parte da Reserva Biológica do Sassafrás (SC), declarada pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) como de tradicional ocupação indígena.

No recurso, a Funai contesta decisão do Tribunal Regional da 4ª Região (TRF-4), para quem não foi demonstrado que as terras seriam tradicionalmente ocupadas pelos indígenas e confirmou a sentença em que fora determinada a reintegração de posse.

Na resolução do caso concreto, prevaleceu o entendimento do ministro Edson Fachin (relator), que deu provimento ao recurso.

Com isso, foi anulada a decisão do TRF-4, que não considerou a preexistência do direito originário sobre as terras e deu validade ao título de domínio, sem proporcionar à comunidade indígena e à Funai a demonstração da melhor posse.

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