UrbsMagna adaptado de: The New York Times, Urban Think Thank e Venezuela Report
Esta torre no centro de Caracas, Venezuela, é apelidada de “Torre de David”, desde a morte, em 1993, de seu principal investidor, o influente banqueiro David Brillembourg. O governo assumiu o controle do edifício sem elevadores, energia elétrica, água corrente, grades de varanda, janelas e, nem mesmo, algumas paredes. Durante a crise bancária de 1994, que levou o país a necessitar de uma ajuda internacional de US$ 11 bilhões (cerca de 5% do PIB), a inflação chegava a 70,8% e o Bolívar, moeda oficial venezuelana, se desvalorizou 50% desestruturando todo o sistema econômico. Na época, a ira social acelerou a derrubada dos partidos políticos tradicionais ante as trapalhadas do governo de Rafael Caldera fazendo com que o militar Hugo Chávez avançasse sobre os escombros de um país desfeito por suas próprias apostas de gigantismo econômico e enormes injustiças sociais. Consequentemente, surgiu um déficit habitacional maciço, o que levou à ocupação do edifício por posseiros em outubro de 2007. Com o tempo, os moradores improvisaram muitos serviços básicos de utilidade pública como água, por exemplo, que agora chega até o 22º andar. Para o acesso às residências existe um serviço de motocicletas para subir e descer os primeiros 10 pavimentos. Os moradores mais recentes usam as escadas para os níveis restantes onde vivem até o 28º andar. Há muitos serviços para a comunidade com várias lojas operando e alguns moradores possuem até mesmo carros, que estacionam na garagem do edifício. Os poucos residentes que têm automóvel próprio têm direito a uma vaga. As demais são alugadas a pessoas de fora, o que constitui uma importante fonte de renda para a comunidade.
Todos são chavistas que agora apoiam Maduro, e, mesmo não tendo uma resposta definitiva do Estado sobre a falta de escritura dos imóveis, as famílias consolidam suas moradias subindo móveis e materiais de construção pelas escadas sem corrimão, mas somente até o 28º andar, por recomendação de bombeiros, acima do qual haveria uma exposição aos ventos cruzados. Além disso, subir parte dos 46 andares, a partir do 10º, exige pernas de atleta e muito cuidado para não pisar no vazio. Existem crateras de 6 metros quadrados onde ficariam os elevadores, de onde um automóvel despencou do nono andar com quatro ocupantes. Mas há grande segurança e organização. Na Torre de David há normas rígidas para a convivência. Uma guarita na entrada contribui para a segurança. Estima-se que existe 1.480 crianças, segundo censo de 12/2013 feito por cartas enviadas a órgãos públicos e empresas pedindo presentes de Natal. Elas correm à beira de abismos, mas são proibidas de brincar sem o olhar de adultos. Há limites de horário para festas. É proibido vender bebidas alcoólicas e drogas. Um serviço informal de vigilância é pago pelos próprios residentes, incluído nas mensalidades do condomínio definido pela “diretoria” composta pelos invasores mais velhos e por “coordenadores” de cada andar. Acima de todos eles, como autoridade inapelável, está um enigmático personagem: Alexander “El Niño” Daza, pastor evangélico e ex-presidiário, quase inacessível.
“Nós construímos um espaço onde podemos viver em paz e harmonia. Não queremos violência, drogas, derramamento de sangue, nada disso. Não roubamos nada. Pagamos eletricidade e água dentro da lei. Cada família paga cerca de 15 dólares por mês para viver aqui. É o mínimo que a nossa comunidade necessita. Estamos tentando agir legalmente, pois se o governo tentar nos expulsar, teremos a papelada pronta”, diz a personalidade maior do TD, que realiza cultos 3 vezes por semana.
Entre os 5 mil residentes, há muitos funcionários de órgãos públicos, policiais, funcionários administrativos e imigrantes. Cada um terminou de construir seu “apartamento” à sua maneira e por isso cada habitação tem um estilo peculiar. As mais consolidadas valem muito mais do que as outras. Se alguém quer vender, a “diretoria” faz uma avaliação de quanto foi gasto em material de construção e mão de obra e fixa um preço a ser pago pela nova família autorizada a se instalar. Nos corredores, há cartazes com as regras obrigatórias, datas de reuniões para discutir problemas e os números de contas a pagar. Cada uma das 27 famílias de cada andar tem um dia marcado para limpar corredores, terraços, escadas e sótãos. Quem não cumprir é sancionado com “trabalho social” ou com a suspensão de serviços de luz e água.
Ainda assim, toda a movimentação de invasão e organização do Edifício Confianza é resultante da degradação da economia da Venezuela. E este exemplo de degradação acabou se tornando um centro de peregrinação para arquitetos do mundo inteiro, pois tais soluções habitacionais engenhosas desenvolvidas pelos habitantes da Torre de David, mencionadas acima, resultaram em uma exposição premiada com o Leão de Ouro na Bienal de Veneza 2012. O evento é promovido duas vezes ao ano para a premiação arquitetônica no mundo inteiro. Então quer dizer que o Torre de David ganhou um prêmio de arquitetura? Não exatamente. Mas sim toda a estrutura habitacional criada em torno da TD para transformá-la em um lugar habitável que o mundo conheceu graças ao Urban Think Tank, um escritório de arquitetos com sede na Suíça e em Caracas, que ganhou a Bienal com um livro, uma exposição e uma transgressora proposta de transformar essa vizinhança em um meio mais humano para os que a habitam. “Uma intervenção prática e sustentável”, avaliaram os arquitetos. Com isso, receberam o Leão de Ouro, que na verdade não é de ouro e que foi doado ao edifício. O prêmio chamou a atenção e desatou uma polêmica já superada. Os críticos chamam a torre de favela vertical, no meio de uma metrópole, mas tem características próprias, diferentes das de uma favela tradicional, como as que vemos em toda a América Latina. Para os críticos, essa é uma visão eurocêntrica, que elogia o exotismo da miséria latino-americana. Os defensores respondem que o prédio tem saídas sustentáveis de baixo custo levando em conta novas formas de composição familiar com particularidades em cada espaço, podendo ser replicadas em outros países. Mas os críticos afirmam que a torre passou de um conceito inovador, progressista, de alta qualidade, de Primeiro Mundo, para um símbolo de marginalidade, deterioração e mediocridade muito parecido com o que ocorreu com o resto do país. Eles estimam o valor da torre, atualmente, esteja entre 600 e 800 milhões de dólares e sua recuperação exigiria de 250 a 300 milhões de dólares, além de concordarem que, para o país, o estado atual do TD é um desprestígio, ainda mais pelo fato de ter se tornado conhecido no mundo por meio da Bienal de Veneza.