Brasil: o 3º país do golpe inevitável

Honduras (2009), Paraguai (2012) e Brasil (2016)

Os golpes hoje são executados no marco das instituições tidas como democráticas. São golpes do século XXI, com uma roupagem constitucional, mais midiáticos e sem ter os militares como protagonistas.

Os golpes recentes nos países latinos justificaram o impeachment de Dilma Rousseff e todo o desenrolar atual em curso no governo Temer. Na época, contagiado por companheiros sul-americanos, o então presidente de Honduras Zelaya cultivou preocupações sociais e pagou por isso. Aqui, manifestações raivosas, manobras no Legislativo e no Judiciário questionaram o mandato da presidenta Dilma Rousseff, deposta em 2019, reacenderam no Brasil e na América Latina a controvérsia sobre a deposição de governos eleitos pelas urnas.

O objetivo claro é destituir presidentes não alinhados com o projeto dos Estados Unidos e das elites regionais. No caso de Honduras, em 2009, o então presidente Manuel Zelaya foi tirado à força de sua casa e colocado em um avião que o levou para a Costa Rica. No caso do Paraguai, em 2012, em menos de 48 horas o Congresso Nacional votou pelo impeachment relâmpago de Fernando Lugo. Nos dois casos, semelhanças que remetem ao atual momento do Brasil: a movimentação progressiva à partir da deposição de um mandatário escolhido pelo voto popular, através de dispositivos legais instrumentalizados por parlamentares e juízes, quando não empresários do setor industrial ou do agronegócio.

Apesar de constituições estabelecerem que o poder emana do povo e, no caso brasileiro, que ele pode ser exercido indiretamente por representantes eleitos como  deputados e senadores,  é sabido o distanciamento entre o interesse popular e representantes legislativos. Uma relação débil e evidenciada nos processos hondurenho e paraguaio, quando veio à tona a ambição de grupos afastados da política por trás dos golpes em ambos os países. 

Empresário e proprietário de terras, Zelaya comandou desde 2006 um governo marcado por tímidos avanços sociais com leve aumento do salário mínimo, a oposição ao escalonamento da “guerra às drogas” de Washington e, de modo geral, a continuidade de políticas neoliberais na economia. Assim, a oposição a ele ficou evidente, no entanto, quando Honduras, duramente afetada pela crise de 2008, se alinhou à Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América (Alba) e à Venezuela que acenava com crédito, petróleo e insumos agrícolas a preços favoráveis.

Foi quando setores oligárquicos encabeçados pelos liberais passaram a articular com militares a destituição do presidente. O protesto, respaldado pela Suprema Corte, foi a intenção de Zelaya de realizar um referendo para decidir se dali a cinco meses, juntamente com as eleições gerais, caberia convocar uma Assembleia Constituinte. Opositores viram na intenção uma manobra para ele se perpetuar no poder, e a acusação de inconstitucionalidade sobre a consulta popular foi elevada a crime de lesa-pátria. Zelaya foi prontamente substituído no poder por Roberto Micheletti, presidente do Congresso, que logo teve o apoio de setores conservadores, abrindo um racha no Partido Liberal, legenda de ambos.

Apesar de a Constituição hondurenha não permitir consultas populares, havia sido aprovada meses antes a Lei de Participação Cidadã, que possibilitaria a realização de um referendo. Só que existia uma clara ingerência do governo norte-americano no país, por meio de empresas privadas e suporte financeiro para manifestantes opositores. O processo pelo qual passa o Brasil hoje tem semelhanças com os que viveram Honduras e Paraguai e com os que vivem na Venezuela e Equador: governos que se mostram independentes dos EUA levam  Washington a intervir. Assim, apesar de Zelaya ser oriundo de grupos oligárquicos, a atmosfera mudou quando ele passou a se voltar para interesses populares. Em Honduras os setores mais poderosos são alérgicos a mudanças sociais. Tanto que depois foram aprovadas diversas leis que favorecem ainda mais a intervenção do capital estrangeiro no país, ao beneficiar, por exemplo, o setor minerador.

Três anos depois da queda de Zelaya, deu-se no Paraguai um golpe que lembra ainda mais o clima do Brasil de hoje. Por 39 votos a favor e 6 contrários, o Senado aprovou em 22 de junho de 2012 a remoção de Fernando Lugo do poder, abrindo espaço para o vice-presidente Frederico Franco, do Partido Liberal Radical Autêntico, um ano após romper a coligação com Lugo. A decisão coroava a aprovação na Câmara dos Deputados, com 73 votos a favor e 1 contrário, ao processo de impeachmentSegundo o argumento oficial, Lugo era retirado do poder pelo “fraco desempenho de suas funções”. Ex-bispo católico ligado a movimentos sociais de esquerda, Lugo mantinha um histórico de atuação com os sem-terra paraguaios. Ele fora eleito com a promessa frustrada de reforma agrária em uma aliança de conveniência com o Partido Liberal, responsável pelo fim ao reinado de mais de 60 anos do Partido Colorado, legenda no poder desde a ditadura de Alfredo Stroessner, entre 1954 e 1989. após um confronto violento com trabalhadores sem-terra na região de Curuguaty, leste do país, onde 11 sem-terra e 6 policiais haviam morrido uma semana antes. Lugo, em um primeiro momento apático, logo acusou o empresário Horácio Cartes (atual presidente do Paraguai) de estar por trás da tentativa de golpe.

Sem aliados no Congresso e com a proximidade das eleições presidenciais em abril de 2013, Lugo era cada vez mais pressionado (ele enfrentou mais de 20 ameaças de impeachment ao longo do mandato) e não via alternativa senão ceder à chantagem permanente. Os liberais ganharam, então, uma fugaz Presidência com Franco. Os colorados, por sua vez, conquistaram de volta o poder, com Cartes eleito meses depois. Lugo nada teve a ver com as mortes no campo. Essa foi uma manobra com objetivo claríssimo: criar uma crise política, na qual a disputa de força ficou evidente. O que aconteceu nem pode ser considerado um processo jurídico de fato, pois não houve tempo hábil para Lugo se defender nem provas. O Brasil vive algo parecido.

Deu-se tanto em Honduras quanto no Paraguai que o Congresso forjasse acusações sem respaldo jurídico, apenas como pretexto político para depor os presidentes. Em 2009, a OEA logo tratou de expulsar Honduras da organização, enquanto o Brasil concedeu asilo a Zelaya em sua embaixada em Tegucigalpa por quatro meses. Em 2012, tanto o Mercosul quanto a Unasul suspenderam o Paraguai do bloco. Recentemente, Ernesto Samper, secretário-geral da Unasul, deixou claro que o órgão pode acionar a cláusula democrática caso a presidenta Dilma seja cassada pelo Congresso sem estar diretamente envolvida em um crime. As manobras em Honduras e no Paraguai. não foram apenas ilegais, como também ilegítimas, e diferentemente daqui, não contaram com apoio da maioria da população. Em ambos os países, a destituição foi arbitrária e impopular. Os desdobramentos mostraram que, por trás de um discurso de defesa do interesse nacional, a motivação dos que lideraram os processos foi a retomada do poder político. Em Honduras retornaram os liberais, e no Paraguai, os colorados.

Ao analisar os casos de Honduras e Paraguai e traçar um paralelo com o momento político atual do Brasil, observa-se que os golpes hoje são executados no marco das instituições tidas como democráticas. São golpes do século XXI, com uma roupagem constitucional, mais midiáticos e sem ter os militares como protagonistas. Mais do que heranças do passado ditatorial que amargou a América Latina nas décadas passadas, os golpes em Honduras e no Paraguai e no Brasil hoje, representam uma ameaça não apenas às conquistas feitas, mas também ao futuro da região.

São movimentos contrários também à consolidação de uma América Latina mais autônoma. Não se trata apenas de analisar o passado, mas também pensar o futuro. E o Brasil, por sua importância regional, simboliza essa maior autonomia do nosso continente. Portanto, tudo o que acontecer com ele será um problema para todos nós. 

*Reportagem publicada originalmente na edição 895 de CartaCapital, com o título “Motivos de inspiração”

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