APÓS ASCENSÃO E QUEDA DO PT, A RESSURREIÇÃO É ÓBVIA, NA VISÃO DE UM FILÓSOFO FRANCÊS

“…é preciso criar uma nova teoria e novas práticas que produzam uma mistura do comunismo, do anarquismo, do socialismo e do liberalismo político – ou seja, das quatro grandes ideologias progressistas modernas.”

Em 2017, o filósofo e escritor francês Dany-Robert Dufour, autor de vários clássicos que denunciam a decadência política e moral do neoliberalismo e do ultraliberalismo, participou de uma entrevista aqui na blogosfera em que foram abordados alguns temas “quentes” da conjuntura política brasileira.

E Dany os conhece bem por causa de ligações familiares com nosso país: ele é casado com uma brasileira e acompanha de perto os acontecimentos por aqui. O texto abaixo foi traduzido por uma pessoa próxima a ele.

Um trecho da entrevista:

O que houve no Brasil, na sua opinião, foi um golpe? Em que sentido? Como você o analisa?

Sim, é um golpe de Estado de um novo tipo, não militar como em 1964, mas jurídico-midiático. Ele decorre diretamente da análise errônea feita pela esquerda brasileira governante quanto às relações de poder. Precisa-se aqui recorrer em parte à filosofia política para compreender esse erro. A esquerda acreditou que, dispondo do poder executivo e de uma boa parte do poder legislativo, ela dispunha das principais alavancas de comando. Ora, sabe-se desde Montesquieu que existe um terceiro poder, o poder judiciário, e que, há mais de cinquenta anos, existe um quarto poder, o poder midiático. São esses dois últimos poderes negligenciados pela esquerda brasileira que causaram sua ruína. Para que o poder da esquerda caísse, bastou que a imprensa dominante montasse um grande espetáculo dirigido às populações desinformadas pela ação dessa mesma imprensa, mostrando como juízes “corajosos” combatiam a corrupção – enquanto que a definição que davam à corrupção era ultra seletiva para que ela não pudesse de modo algum tocar nos amigos deles.

Quais são as principais características do neoliberalismo?

Se é difícil apreender o neoliberalismo é porque ele coloca em jogo duas noções diferentes que, infelizmente, na maior parte das análises, são confundidas. Quero dizer com isso que é absolutamente necessário distinguir o ultraliberalismo do neoliberalismo. O primeiro é de natureza econômica e ele funciona baseado em um princípio simples: “ É preciso deixar agir (laisser-faire) os egoísmos privados.” Esse princípio visa a criar um espaço social niilista, impregnado de um novo e potente darwinismo social onde todos os valores são reduzidos ao valor mercantil. Os “mais aptos” podem a partir daí extrair “legitimamente” proveito e lucro de todas as situações ao passo que os “menos aptos” são pura e simplesmente abandonados.

Quanto ao neoliberalismo, ele é de ordem política. Para criar essa selva social ultraliberal submetida à lei do mais forte, é preciso destruir todas as formas de solidariedade, seja ela familiar, amical, sindical, comunitária, estatal, etc. O que implica uma política dura, podendo chegar até a criação de um Estado de exceção a fim de impor o laisser-faire econômico.

Nunca se deve esquecer que o laboratório do neoliberalismo foi o Chile de Pinochet a partir de 1973. Os Chicago boys formados por Milton Friedman estiveram no coração dessa ditadura política. Um paradoxo difícil de entender é que é preciso uma ditadura para impor o laisser-faire.

Por que o neoliberalismo conquistou a hegemonia ideológica no mundo de hoje?

O “deixar agir” (laisser-faire) os interesses privados destina-se a criar um vasto mercado ultraliberal que funciona como uma religião. Ele contém uma promessa, não de vida eterna, mas de satisfação de todos os desejos imediatos. De fato, o Mercado é essa instância que interpela cada um de nós dizendo: “Peça tudo que quiser e você o terá sob forma de objeto de consumo, de serviços comerciais, de fantasias sob medida tal como as oferecidas pela indústria cultural”. Dito de outra maneira: o ultraliberalismo tem êxito porque ele lisonjeia as tendências mais vis da alma humana.

Em sua opinião, qual o papel dos meios de comunicação de massa no exercício desta hegemonia ideológica do neoliberalismo?

Na antiga religião, o sino batia as horas e convocava os fiéis para a missa. O divino Mercado dispõe dos meios de comunicação de massa que fazem “plim-plim” para ocupar o espaço-tempo social e entregar regularmente a “boa palavra” sob três formas: publicidade incessante promovendo o egoísmo dos interesses privados, desqualificação sistemática de qualquer forma de interesse geral e espetáculo permanente para divertir e adormecer as massas.

Quais foram, na sua opinião, os principais obstáculos e dilemas enfrentados pelo socialismo, democrático ou não, no pós-guerra, e que o fizeram fracassar em tantos países ?

O modelo soviético gerou uma aversão. Ele deu ao comunismo uma caricatura grotesca e aterrorizante. Quanto ao anarquismo, ele nunca almejou o poder. A social-democracia teve seus momentos de triunfo no “Primeiro Mundo” (os anos chamados Trinta gloriosos, de 1945 a 1975) e na América Latina (a primeira década dos anos 2000), mas ele deixou-se comprometer pela ideologia do Mercado.

O que a luta de classes na Europa, com seus fracassos e vitórias, tem a ensinar à América Latina?

O ensinamento é que é preciso reconstruir tudo na esquerda. Resumindo, é preciso corrigir o comunismo pelo liberalismo, não o econômico, mas o liberalismo político (que garante o pluralismo de pontos de vista) e pelo anarquismo (que se preocupa não somente com o coletivo, mas também com a realização de todas as potencialidades do indivíduo). E será preciso corrigir o liberalismo político pelo socialismo que exige uma sociedade comum entre os indivíduos, o que não acontece hoje posto que, as oito pessoas mais ricas do mundo possuem tanto quanto a metade mais pobre o mundo, ou seja, três bilhões e meio de pessoas (segundo dados da ONG Oxfam).

Em suma, é preciso criar uma nova teoria e novas práticas que produzam uma mistura do comunismo, do anarquismo, do socialismo e do liberalismo político – ou seja, das quatro grandes ideologias progressistas modernas. Mas isso não é tudo. Porque é necessário ainda que as novas práticas de produção e de consumo sejam compatíveis com a manutenção e até mesmo com a restauração dos ecossistemas indispensáveis à sobrevivência da humanidade. De fato, eles estão atualmente muito degradados conforme indicam as graves mudanças climáticas, as propagações súbitas de vírus e de epidemias, a diminuição drástica da diversidade das espécies, as poluições múltiplas e irreversíveis, entre as quais as da água e do ar que respiramos.

Que contradições do capitalismo contemporâneo podem nos dar alguma esperança de redenção social?

O capitalismo está condenado a se despedaçar no choque com o real: para atingir a riqueza infinita, ele destrói os indivíduos, as solidariedades sociais e o meio ambiente. Em suma, ele consome tudo e a gente junto. Estamos nos afogando, mas esperemos que ao chegar ao fundo, saberemos dar a braçada do salva-vidas para construir outro destino. O que é perfeitamente possível, como acabo de indicar acima.

***

Dany-Robert Dufour é filósofo francês e tem dezoito livros publicados em editoras importantes como Gallimard, Denöel, etc. Elaborou uma antropologia crítica do ultraliberalismo em vários volumes, alguns deles publicados no Brasil: A arte de reduzir as cabeças nas sociedades liberais (2005, Ed. Companhia de Freud, RJ), O Divino Mercado (2009, Ed. Companhia de Freud, RJ), A Cidade Perversa (2013, Ed. Civilização Brasileira, RJ), A existência de Deus comprovada por um filósofo ateu (2016, Ed. Civilização Brasileira, RJ).

Urbs Magna adaptado de O Cafezinho

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