Adeus Copa (Desculpe qualquer coisa)

Copa do mundo 2014

Escrevi semana passada sobre a Copa e sobre a lição que o Brasil está prestes a dar ao mundo. Ainda há o que dizer a respeito. Segundo Cosme Rímoli, jornalista esportivo do Portal R7: “Levantamento mostra que apenas 41% do que foi prometido [ referindo-se as obras para a Copa ] acabou cumprido”. Ou seja: “59% das obras que beneficiariam a Nação sumiram do organograma da Copa”. A Fifa queria oito sedes. Nós definimos que 12 arenas seriam construídas, por razões políticas – que no Brasil quase sempre se traduzem em vantagens econômicas para alguns. “Com quatro elefantes brancos assumidos. Cuiabá, Brasília, Natal e Manaus”, escreve Rímoli, que cita declarações do Ministro dos Esportes de Lula, em 2007, ano em que ganhamos a disputa pelo direito de sediar a Copa: “O Brasil não vai gastar um centavo com os estádios que serão construídos ou reformados para a Copa do Mundo. A CBF nos apresentou uma estimativa de 1,1 bilhão de dólares (na época, R$ 2,2 bilhões). Dinheiro da iniciativa privada. Será a melhor Copa de todos os tempos”. Segue Rímoli: “Os custos da dúzia dos estádios [ sic ] batem nos R$ 10 bilhões. Quase cinco vezes mais a previsão [ sic ] da CBF e de Orlando Silva. E 70% desse dinheiro é [ sic ] público. Cerca de R$ 7 bilhões. A Copa do Mundo do Brasil custará mais do que as três últimas somadas. Mais do que a da Coréia e Japão, Alemanha e África do Sul. Elas custaram R$ 16 bilhões, R$ 6 bilhões e R$ 8 bilhões. Juntas, R$ 30 bilhões. A do Brasil deverá ficar no mínimo em R$ 31 bilhões. A estimativa em 2011 apontava R$ 40 bilhões. Foram cortados R$ 9 bilhões em obras para o país. Justo as que serviriam como legado. Como profunda reforma nos aeroportos e mobilidade social”.

estadio_manegarrincha_britojunior_div01-638x400O número exposto por José Nêumanne, comentarista da Jovem Pan, difere pouco: “O principal executivo do governo federal na organização do evento, Luis Fernandes, explicou que serão gastos R$ 28 bilhões, o que representa as despesas das três últimas copas”. Segundo o Globoesporte: “Em 2010, quando foi assinada a Matriz de Responsabilidades da Copa – documento que lista os investimentos prioritários para o Mundial -, a previsão era de que fossem gastos R$ 5,38 bilhões com estádios. Quatro anos depois, a conta, que ainda não está totalmente fechada, está em pouco mais de R$ 8 bilhões – aumento de 48%”. São variações sobre o mesmo tema. E tem muita coisa na lista daquilo que será entregue que simplesmente não ficará pronta a tempo. A começar pelos próprios estádios, item básico de uma Copa. Ou seja: a “Copa das Copas” tem tudo para ser uma das mais desorganizadas de todos os tempos. E já é a mais cara da história. Por cara, leia-se “superfaturada”. A obesidade mórbida desses gastos não representa investimentos megalômanos que se reverterão em serviços e experiências igualmente extraordinários para visitantes e nativos. Essa gastança toda perdeu-se no velho ralo brasileiro formado pela corrupção e pela ineficiência. Quando nós não somos ruins, no sentido de mal intencionados, de filhos da puta mesmo, somos simplesmente ruins no sentido de ineptos, incompetentes, lorpas.

5881153236_ccf72be3d4_mA verdade é que nós tínhamos uma oportunidade de ouro para o país, ao sediarmos o maior evento do planeta. Para variar, a desperdiçamos. Para variar, em nome de ganhos pessoais, privados, imediatistas. Para variar, porque somos tão malandros, queremos tirar tanta vantagem, buscamos tanto a locupletação, o lucro fácil e imediato, que nos damos mal. Mesmo quem se dá muito bem no curto prazo acaba se dando, no médio prazo, muito mal. Enriquecer entre miseráveis não é saudável, nem sustentável, inclusive para o novo rico. Ainda não aprendemos isso – o que é uma prova adicional da burrice pátria. Se soubéssemos como é bom ser honesto, seríamos honestos só por malandragem. Ou só porque é bom ser bom. É assim que se enriquece de verdade – trabalhando, ganhando e deixando os demais ganharem e enriquecerem também. Acumular solitariamente o que não é seu, em detrimento dos outros, sem sequer se dar ao trabalho de efetivamente produzir algo, não constroi nada e não leva a lugar nenhum. Devíamos ter aprendido essa lição há muito tempo. Temos testado por séculos, sem sucesso, esse modelo de corrupção generalizada. Hoje temos um PIB per capita de 12 mil dólares. Ocupamos, assim, o 79º lugar no ranking PPP – poder de compra per capita, a melhor régua para comparar a riqueza entre países. Estamos atrás de Costa Rica, Suriname, Líbano, Botswana e Gabão, por exemplo. Com nossos recursos, e com um pouco de honestidade, boa gestão, planejamento e eficiência, o Brasil teria plenas condições de estar entre os dez países mais prósperos do mundo, faixa em que o PIB per capita começa com os 43 mil dólares de Austrália e Canadá, dois países diante dos quais o Brasil, na produção de riquezas, tanto quanto no futebol, não deveria ter o direito de fazer feio.

justic3a7aprgBem, nada disso é novo. A nossa desonestidade e a nossa incompetência médias compõem, infelizmente, uma espécie de traço constitutivo da cultura nacional. Desde sempre. Somos tanto o país da propina, dos 10%, das zonas cinzentas morais, quanto o país do desperdício. E não imagine que isso ocorra só no âmbito da administração pública. É uma enormidade o que há de comissões espúrias, fees que não ousam dizer o próprio nome, sonegação, caixa dois, molha-mão, melzinho na boca, incentivos a vendas esquisitos, com jeito de “bola”, combinações por baixo dos panos e “bonificações de volume” (já ouviu falar em BV?) em nossos mercados corporativos. E se descermos mais um degrau, em direção à vida privada, encontraremos, desgraçadamente, um pá de brasileiros pouco corteses e pouco cidadãos e em nada solidários, que furam a fila, que jogam lixo no chão, que andam pelo acostamento, que ultrapassam por fora, na contramão, que subornam o garçom, que fazem questão de levar vantagem em tudo. Saiba que há uma “taxa do síndico” nas compras que o seu condomínio faz. Não preciso dizer mais nada. Nós somos assim. Correção e rigor ético não são nossos fortes. Aqui, o corrupto se sente no direito de roubar. Assim como o ladrão pé de chinelo. O bacana é sonegar, esperto é quem suborna e quem se locupleta e quem prevarica. O cidadão honesto é otário, quem faz as coisas direito é coxinha.

tumblr_lt7zvr2gFm1qerm5nMesmo assim, estamos tratando a Copa do Mundo como se esse descalabro na gestão, tanto em termos de lisura quanto em termos de eficiência, fosse uma novidade. Como se não fosse uma rotina brasileira – jogar dinheiro fora por desonestidade ou por leniência. Estádios e aeroportos entregues incompletos, com atraso e custando muito mais do que o orçado são a expressão institucional do que acontece com qualquer reforma que você precisar fazer em sua casa. Isso não serve de desculpa para nada. Mas também não começou com a Copa, o foco de toda a nossa ira santa. Diante disso, estamos agindo como se a solução fosse acabar com a Copa do Mundo, e não com a corrupção que nos assola. O que, a meu ver, é reagir contra o adversário errado, é não reconhecer quem é o verdadeiro inimigo, é atacar o Dr. Jekyll e deixar o Mr. Hyde solto, incólume, para continuar sua senda de crimes lesa-pátria. Ao atacar a Fifa, não estamos discutindo o que realmente importa – a corrupção endêmica e a ineficiência crônica que nos prendem ao passado há centenas de anos. Ou seja: além de inócua em resolver alguma coisa, nossa reação raivosa à Copa é contraproducente porque não ataca o que deveria ser atacado, e assim serve como uma pantomima, como uma distração daquilo que realmente precisa ser feito no Brasil. Muitos de nós, aglomerados debaixo do mote “Não vai ter Copa”, estão se preparando para enterrar de vez a Copa. Aparentemente, teremos mais barricadas e protestos e marchas do que jogos durante o evento. Terminaremos com a sensação de que fizemos algo útil e histórico. Ficaremos provavelmente com a sensação de dever cumprido. E, no entanto, é exatamente depois da Copa que a arena política que realmente importa vai se estabelecer no país.

imagesEis quando deveríamos ir para a rua, exigir mudanças. E, sobretudo, praticar mudanças. O Brasil não muda se você não mudar. A maior revolução que você pode fazer é na sua própria vida, na sua família, nas suas rotinas e nas suas relações. De novo: o câncer brasileiro não está só em Brasília. Ele está aqui embaixo, entre nós, na sua rua, na escola do seu filho, na sua casa, no escritório. Nós fazemos parte desse cancro. E o jeito de começarmos a extirpá-lo é olharmos para os nossos próprios umbigos, antes que tudo. Brasília é só um reflexo do país, uma versão condensada daquilo que somos. O problema, enfim, é interno, é histórico, é doméstico. Eis por que o movimento anticopa é, em essência, uma fanfarra diversionista. Um oportunismo sem possibilidade de gerar consequências práticas benéficas – acarretará apenas na pintura de um quadro horrendo do país no exterior, evitando que gente lá de fora venha gastar seu dinheiro no Rio ou em Florianópolis ou em Fernando de Noronha. Perceba que uma Copa, mesmo quando bem administrada, tende a ser um evento deficitário, considerando as receitas que gera e os custos que impõe diretamente. Só faz sentido receber um evento internacional desse porte por uma razão: vender uma boas imagem do país ao mundo, como um lugar confiável, bom para se fazer negócios e para se visitar. Essa Copa, portanto, é um duplo prejuízo. Os políticos e dirigentes se encarregaram de construir um rombo financeiro sem precedentes. E nós, o povo, dispostos que estamos a arreganhar ao planeta nossas entranhas mais espúrias, estamos nos encarregando de matar a única possibilidade que tínhamos de amenizar ou de reverter esse revés.

Dicas-de-Férias-Copa-do-Mundo-2014-02De fato, já estamos espantando gente antes da Copa. Das 560 mil vagas de hotéis disponíveis no país para o evento, apenas 300 mil foram vendidas. Ou seja: 45% dos turistas esperados provavelmente não virão. É mais ou menos como comprar um espaço de mídia caríssimo, em horário nobre, por várias vezes o preço que ele vale, e usá-lo para veicular somente má publicidade a seu próprio respeito. Vale sublinhar bem esse ponto: a Copa virou um bode expiatório. Sempre falamos dos problemas brasileiros como se eles fossem gerados pelos outros, como se nós não tivéssemos nossa parcela de contribuição e como se não tivéssemos que rever nada em nós mesmos. É que, ao reclamar, nos colocamos como vítimas. Ao culpar o que vem de fora, nos eximimos de repensar o que acontece aqui dentro. No que se refere ao evento, vivemos uma situação terrível no aspecto institucional. Os números, citados na abertura desse post, são inequívocos em relação a isso. A única chance que tínhamos de salvar a Copa entre nós, como momento histórico, seria o povo abraçá-la. Apesar de tudo. Cuidar dela. Ter alegria com ela, gerar alegria, distribuir alegria. Receber bem os visitantes – fala-se em 600 mil estrangeiros aportando no país entre 12 de junho e 13 de julho. Esse era o único retorno ainda possível para o investimento que fizemos. Não é isso que está se vendo. Provavelmente não é isso que acontecerá, infelizmente.

newtonsilva2Nós também, o povo, estaremos contribuindo, ao nosso modo, para detonar a Copa. Para torná-la, enfim, um evento infeliz. Uma péssima lembrança na memória do país. Parece que é isso que queremos. E provavelmente é isso que conseguiremos. Talvez a gente pudesse mostrar que o povo é melhor que seus representantes nesse país. Que nossa sociedade civil é melhor que nossa classe dirigente. Talvez pudéssemos dizer, no futuro, quando nos perguntarem porque a Copa de 2014, no país do futebol, foi um fiasco, que nossos políticos e dirigentes fizeram de tudo para acabar com ela, e que nós, os brasileiros comuns, a salvamos. Talvez pudéssemos dizer que, findo o evento, cobramos caro dos nossos representantes, nas urnas, e em nossas escolhas de consumo, o preço dessa vilania, por tudo de ruim que perpetraram. (Quem sabe deixamos de comprar apartamentos daquela determinada construtora? Quem sabe boicotamos todos os negócios onde está metida aquela empreiteira?) É provável que façamos exatamente o contrário – vamos arrebentar com a Copa, atrapalhar o quanto pudermos o evento, e em outubro vamos eleger de novo toda sorte de crápulas e de nulidades. Gentinha elege gentinha. Gentalha elege gentalha. Talvez pudéssemos afirmar que o país não são eles, que o país somos nós.

downloadInfelizmente, estamos dispostos a perpetrar coisas igualmente deletérias tão logo as delegações e a imprensa internacional comecem a aportar no Brasil. Desde achacar turistas desavisados até impedir com todas as nossas forças que o evento corra bem e dê minimamente certo. Esse é o espírito de muitos brasileiros, lamentavelmente. Para uns, trata-se de “como eu ganho com a Copa” – o que, aliás, reproduz ipsis literis o pensamento dos tubarões que acabaram com ele. Para outros, trata-se de “como eu acabo com a Copa” – o que também espelha, por vias tortas, a atuação dos predadores institucionais cuja atuação os manifestantes declaram querer criticar. Eis o ponto que tenho tentado fazer sobre a Copa. Estou triste de ver um sonho se transformar em pesadelo. Em ver que não conseguimos superar nossa vocação para o malefício e para a boçalidade. Estou triste de ver que nós também, o povo, estamos a um passo de destroçar a Copa com nossas próprias mãos. E aí, de novo, não nos diferenciaremos em nada, aqui no nível das ruas e das calçadas, daquelas lesmas e daquelas sanguessugas que operam no nível dos camarotes refrigerados e dos carros pretos. Aos invés de nos insurgirmos contra eles, estamos nos insurgindo contra o país, contra o Brasil, contra nós mesmos. Adeus, Copa. Desculpe qualquer coisa.

 

Reprodução íntegra da postagem de Adriano Silva do Blog Manual de Ingenuidades com Ilustrações e fotos adaptadas por UrbsMagna

8cc06aa947846dfc7071449392971fb5Copyright © 2014 UrbsMagna

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