Curso prático para produzir uma tragédia educacional – combinação de desemprego, desalento juvenil e balbúrdia no MEC criam cenário explosivo

Às vezes, basta puxar um papo. Todos os caixas do mercado em que faço compras, perto de casa, não completaram o ensino médio. Alguns estão na EJA (Educação de Jovens e Adultos), modalidade que já teve o nome de supletivo num passado recente, destinada a educar pessoas que não conseguiram terminar o ensino básico. No caminho para a Nova Escola, entre o ponto de ônibus no qual desembarco e a nossa sede, sempre encontro um jovem ou adolescente entregando papel de alguma loja ou promoção. Quando pego, tento puxar papo. Quando sou bem-sucedido, a resposta é sempre a mesma. Ou a pessoa abandonou a escola ou está prestes a deixá-la.

Hoje, nós estamos perdendo uma geração de jovens e adolescentes. As escolas têm sido incapazes de competir pelo tempo e pela atenção das pessoas que mais precisam dela. Estudar sempre faz diferença. Para os mais pobres, a diferença é ainda maior. E, especialmente entre eles, o abandono é grande. Hoje, no Brasil, 40% dos jovens de até 19 anos não concluíram o ensino médio. É muita gente.

E a sangria não se dá porque o mercado de trabalho está aquecido para eles. Longe disso. Pelos dados recentes, 1 em cada 4 jovens de até 24 anos no Brasil está desempregado. São pessoas que estão procurando uma ocupação, mas não encontram. Some-se a esse dado as milhares de pessoas, nessa faixa etária, que simplesmente desistiram de procurar algo —tem uma hora que a busca cansa, a depressão bate, o salário não é suficiente para fechar as contas. Só esse último número multiplicou por três na comparação com 2014.

É difícil acreditar que essas pessoas estejam paradas. Há milhares, talvez milhões de pessoas, presas em bicos, entregando papel, fazendo qualquer coisa para trazer algum dinheiro por mês para dentro de casa. Elas não consideram essas ocupações empregos formais, é claro. Consome pouco tempo e paga ainda menos. Essas pessoas poderiam estar na escola. Infelizmente, nós não oferecemos isso para elas. Dizem que a diferença entre um maluco e uma pessoa sã é a disposição em queimar notas de R$ 100. Mal comparando, somos um país de malucos. Nós queimamos o talento de milhares de pessoas todos os dias.

Há vários caminhos para reverter essa situação. E todos eles passam pela boa política —a capacidade de articular pessoas, organizações e dinheiro para resolver problemas complexos. Como lembrou recentemente o jornalista Antônio Gois, um dos maiores especialistas em educação do país, há vários bons estudos sobre como vencer grandes desafios educacionais. Embora o caminho não seja simples, há um certo número de fatores que predizem, com uma boa dose de acerto, o sucesso de uma política.

O primeiro é resolver um problema que os profissionais da educação, especialmente os professores, têm e querem resolver. Outra abordagem possível é dialogar com os educadores para mostrar a gravidade de uma questão —e mostrar como a reforma proposta ataca essa dor até então invisível. Ainda há o caminho da pressão pública, quando a sociedade se mobiliza para solucionar uma questão. E, claro, nunca podemos nos esquecer: quem cobra também tem de ajudar a resolver. Os profissionais de educação precisam não apenas participar dos debates. Eles precisam ser protagonistas da discussão. E, depois disso, eles devem ter apoio, ferramentas e recursos para implantar as mudanças necessárias.

Não será na base da agressão e da bagunça, método adotado pelo MEC (Ministério da Educação) nos últimos meses, que o problema do ensino médio será resolvido. Há um razoável consenso de que essa etapa precisa mudar. Os professores estão dispostos a colaborar. Há muitas organizações da sociedade civil, como sindicatos, ONGs e associações, com ideias relevantes para colocar à mesa e reformar o ensino médio. Porém, alguém precisa articular isso nacionalmente. O MEC deveria fazer esse papel. Porém, em vez disso, tem optado por servir de animador de auditório para os fãs mais engajados do presidente da República. É um desperdício de tempo e dinheiro que faz inveja a apostadores compulsivos de cassino.

E não pensem que esse abandono não custa caro. Apesar de a escola não fazer sentido no médio, milhões de pessoas querem concluir os estudos. Hoje, há cerca de 3,5 milhões de pessoas matriculadas na EJA. E, para se ter uma ideia do quanto o MEC está perdido, a etapa é uma das que, proporcionalmente, mais perdeu recursos no movimento ceifador do ministro Abraham Weintraub. Segundo reportagem de Paulo Saldaña aqui na Folha, a EJA perdeu 41% do seus recursos, que já eram poucos.

E esse investimento é essencial. A Nova Escola mostrou, recentemente, que a educação de jovens e adultos muda a vida dos concluintes. É como se o país pagasse, com atraso, a dívida que deixou aberta com as gerações anteriores. Vou reforçar esse ponto: nós desperdiçamos dinheiro e tempo ao não investir nas pessoas.

O MEC está diante de uma oportunidade histórica. Nunca se discutiu tanto educação quanto nos últimos anos, nunca se construiu tanto consenso. A escolha é simples. Ou o MEC aprende a conversar ou vai ser cocriador de uma tragédia educacional sem precedentes. Não se enganem: as coisas sempre podem piorar. Se seguir nessa toada, essas gestões do ministério poderão dar cursos sobre como explodir a educação pública num país de renda média. Será um case de distopia sem precedentes.

via Folha de São Paulo

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