“Chega de golpe”, diz Gleisi ao chegar a Bolívia onde acompanhará as eleições

Um ano após o golpe contra Evo Morales, os bolivianos voltam às urnas neste domingo (18). O líder das pesquisas é o ex-ministro Luis Arce, do Movimento ao Socialismo. Os principais adversários são da direita: o ex-presidente Carlos Mesa e Luis Fernando Camacho, um dos agentes do golpe. O controle do lítio é um dos temas centrais da disputa.

Ativistas, parlamentares e especialistas em eleições dos continentes europeu e americano chegam à Bolívia com a missão de acompanhar e fiscalizar a eleição presidencial.

A presidente nacional do Partido dos Trabalhadores, Gleisi Hoffmann, também chegou lá, neste sábado (16), e postou em seu perfil social do microblog Twitter: “Cheguei a Bolívia para acompanhar, com o Observatório do Parlasul, as eleições presidenciais no domingo. É a oportunidade do país restabelecer a ordem democrática, com todos respeitando a soberania do voto popular, respeitando o resultado das eleições. Chega de golpes

O Observatório do Parlasul, mencionado por Gleisi, é o O Observatório da Democracia do Parlamento do MERCOSUL (ODPM). Ele foi criado com o propósito do contribuir com o fortalecimento dos objetivos do Protocolo de Ushuaia sobre o Compromisso Democrático no MERCOSUL, no Estado Plurinacional da Bolívia e na República do Chile.

O papel do Observatório consiste em acompanhar os processos eleitorais nos Estados Partes; coordenar ações do Corpo de Observadores Eleitorais do MERCOSUL; realizar as atividades e proporcionar os Relatórios que sejam solicitados pelo Parlamento do MERCOSUL ou pelo Conselho do Mercado Comum (CMC), apresentar um relatório anual das suas atividades ao Pleno, que será remitido ao CMC e à Comissão de Representantes Permanentes do MERCOSUL (CRPM).

A criação do Observatório teve o fim de realizar atividades e estudos vinculados à consolidação da democracia na região, incluindo indicadores e estadísticas sobre a matéria. No âmbito do Observatório se constituirá um Foro de Consulta integrado por cinco membros de cada Estado Parte para estabelecer o vínculo do Observatório com a Sociedade Civil. Através deste órgão interno, o Parlamento do MERCOSUL tem por objeto cumprir com seu compromisso de proteção permanente e promoção da democracia, da liberdade e da paz.

Os relatos dos observadores revelam preocupação com a atuação do Tribunal Supremo Eleitoral (TSE) da Bolívia e, ironicamente, com o papel das próprias organizações estrangeiras que se propõem a avalizar o pleito deste domingo.

Em 2019, a reeleição do então presidente Evo Morales, do partido Movimento ao Socialismo (MAS) foi impedida após auditoria da Organização dos Estados Americanos (OEA), que informou uma suposta fraude na apuração dos votos. Aquela acusação foi descartada por estudos independentes, mas inflamou opositores e levou à renúncia de Morales, hoje exilado na Argentina.

A OEA foi mantida na lista de observadores oficiais no pleito de 2020, apesar do “rechaço categórico” do MAS. “Não é ético que eles voltem a participar, porque foram parte e cúmplices do golpe à democracia e ao Estado Social de Direito Constitucional da Bolívia”, manifestou-se o partido, ressaltando que os chefes da missão da OEA são os mesmos que atuaram em 2019.

O TSE boliviano também confirmou a presença de missões da União Europeia, que já está no país, do Centro Carter, fundado pelo ex-presidente dos Estados Unidos Jimmy Carter, da União Interamericana de Organismos Eleitorais e da Associação de Organismos Eleitorais da América do Sul.

Políticos de países vizinhos chegam à capital La Paz a convite do governo interino, de organizações sociais ou voluntariamente. Entre eles, há representantes do Parlasul, órgão democrático e legislativo da representação civil dos povos dos países que integram o Mercosul, como a deputada federal Sâmia Bomfim (PSOL-SP).

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Deputada federal Sâmia Bomfim (PSOL-SP)

Para a parlamentar, que chegou ao país sul-americano na noite desta quinta (15), “a Bolívia passa por uma situação muito difícil. O governo golpista de Jeanine Áñez trabalha para tumultuar o processo eleitoral, buscando manter no poder a oligarquia imperialista que lhe dá sustentação”. 

“Nossa ida ao país para acompanhar de perto as eleições tem como objetivo fiscalizar e impedir qualquer tentativa de manipulação ou violência política. O povo boliviano precisa ser respeitado em sua decisão nas urnas e o país deve ter sua soberania resguardada”, completa Bomfim.

A jornalista e ativista estadunidense Zoe Pepper-Cuningham chegou à Bolívia nesta sexta (16). Ela integra a delegação de observação da ONG Codepink, que se apresenta como “movimento popular de paz e justiça social que trabalha para acabar com guerras e ocupações financiadas pelos EUA pelo mundo”.

“Vamos participar da agenda preparada pelo TSE, que fará orientações gerais sobre como funcionam as eleições, qual a metodologia para observação”, relata a ativista. “Apesar de todas as restrições de mobilidade que a pandemia nos impõe, é importante estarmos lá para observar, documentar e garantir que não haja fraude e que a lei seja cumprida”.

A observadora estadunidense chama atenção para as manobras que levaram ao adiamento das eleições – que deveriam ter ocorrido no primeiro semestre, antes mesmo da chegada da covid-19 ao país.

“Temos visto com muita preocupação todos os golpes à democracia boliviana: a perseguição jurídica a líderes do MAS, acusações absurdas de terrorismo, e tudo isso com a finalidade de debilitar o partido. O próprio TSE atuou de maneira irregular, por exemplo, ao consentir com esses adiamentos mesmo sob protesto da população”, adverte.

A violência que tomou conta após o golpe de Estado do ano passado deixa um sinal de alerta para este novo pleito presidencial, como observa Pepper. “Estamos em um contexto de reiterados golpes à democracia, às instituições, desde o golpe, com muitas ações sucessivas. Ouvimos muitos rumores, tivemos acesso a vídeos em que representantes das Forças Armadas dizem ter autorização para disparar contra manifestantes, e tudo isso nos preocupa muito”.

Ameaças a jornalistas

Logo na chegada à Bolívia, integrantes do Codepink e de veículos estrangeiros como Russia Today (RT) e Sputnik foram fotografados no aeroporto e ameaçados nas redes sociais. Jornais locais que se opuseram à reeleição de Morales em 2019, como o Página Siete, alegam que muitos dos observadores “apoiam Maduro” – presidente da Venezuela.

O TSE esclareceu à imprensa que o Codepink tem aval do Departamento de Estado dos EUA e, por isso, está autorizado a acompanhar e fiscalizar as eleições.

Jornalistas também começam a sofrer pressões. Max Blumenthal, experiente repórter estadunidense que acaba de chegar à Bolívia para cobertura do pleito pelo The Grayzone, foi chamado pelo candidato de direita Luis Fernando Camacho de “especialista em desinformação”: “Encarregado de reafirmar a teoria do golpe”, disse o candidato em suas redes sociais.

Observadores noruegueses, que formaram o Grupo de Apoio ao Processo Eleitoral na Bolívia, enviaram nesta quinta-feira (15) uma carta ao chanceler da Noruega. No texto, a entidade pede que o país denuncie ao Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU) manobras do governo interino, que estaria preparando uma fraude eleitoral para evitar a vitória do MAS.

Além dos observadores estrangeiros, se somam à tarefa organizações bolivianas como Ruta de la Democracia e Observa Bolivia, mas nenhuma delas qualificou o processo de anulação das eleições de 2019 como golpe nem se contrapôs à OEA sobre a hipótese de fraude.

As pesquisas eleitorais indicam que o pleito será novamente acirrado. Luis Arce, candidato do MAS, aparece em primeiro lugar. A margem de erro sinaliza que pode haver vitória em primeiro turno. Para isso, Arce precisaria obter mais de 40% dos votos válidos e abrir 10 pontos percentuais em relação ao segundo colocado.

Carlos Mesa (Comunidade Cidadã), que representa a direita liberal ou tradicional, está em segundo lugar, seguido por Camacho (Acreditamos), ex-presidente do Comitê Cívico de Santa Cruz e considerado um dos responsáveis pelo golpe de 2019.

Lítio

disputa pelo lítio foi o principal motivo do golpe que resultou na renúncia do então presidente boliviano Evo Morales, em novembro de 2019. Essa é a avaliação do Movimento ao Socialismo (MAS), que governou o país entre 2005 e 2019, e de analistas internacionais.

Lítio é um metal alcalino usado para fabricação de pilhas e baterias, cujas maiores reservas mundiais estão na Bolívia – cerca de um terço de todo lítio do planeta. Um dos pilares do governo Morales foi a nacionalização do petróleo, do gás e dos recursos minerais do país, o que permitiu um crescimento econômico recorde e a redução da extrema pobreza em quase 20 pontos percentuais.

Candidato no pleito de outubro e líder nas pesquisas de intenção de voto, Luis Arce (MAS), conduziu esse processo à frente do Ministério de Economia e Finanças ao longo de 12 anos. A proposta baseou-se na transferência de empresas privadas para o controle do Estado e, principalmente, na renegociação de contratos de transnacionais, que tiveram que pagar um imposto adicional de 32% para exploração dos recursos minerais.

“A nacionalização foi fundamental porque deu solvência à carteira do Estado. Se não fosse aplicada a nacionalização, o Tesouro estaria ‘de bolsos vazios’, impedido de aplicar qualquer tipo de política, porque elas dependem de recursos econômicos”, explicou o diretor do Instituto de Pesquisas Econômicas da Universidad Mayor de San Andrés (UMSA), Marcelo Montenegro, em entrevista ao Brasil de Fato.

O lítio é um dos assuntos mais citados nas campanhas virtuais dos candidatos à presidência, o que evidencia uma disputa de projeto político e econômico cada vez mais acirrada. A pandemia do novo coronavírus, com impactos sobre a economia mundial, reforçou a importância do debate sobre mudanças na matriz energética e estratégias para retomada do crescimento do Produto Interno Bruto (PIB).

O tema ganhou ainda mais centralidade a partir de 25 de julho de 2020. Foi quando Elon Musk, CEO da Tesla, empresa estadunidense que fabrica carros elétricos, respondeu de maneira irônica e agressiva a um comentário nas redes sociais sobre sua participação na anulação das eleições de 2019 na Bolívia: “Vamos dar golpe em quem quisermos. Lide com isso”.

Para Arce, a declaração de Musk é reveladora sobre os motivos do golpe e os interesses estrangeiros que estão em jogo nas novas eleições. Os demais presidenciáveis, que haviam apoiado a renúncia de Morales no ano anterior, minimizam o posicionamento do CEO da Tesla.

Entenda as propostas dos principais candidatos bolivianos sobre a gestão do lítio:

Luis Arce (MAS-IPSP)

O candidato do MAS defende que o Estado retome acordos com empresas estrangeiras – alemãs e chinesas – para produção de baterias de lítio em território boliviano, desde que esteja assegurado o respeito à soberania nacional e o compromisso com a sustentabilidade. Ou seja, o lítio continuaria estatal, mas a industrialização seria feita em parceria com a iniciativa privada.

Em 2019, a Embaixada da China na Bolívia chegou a anunciar que o país se tornaria o maior produtor de veículos elétricos do mundo, após fechar um acordo de quase R$ 13 bilhões para industrialização do lítio boliviano. A negociação com as empresas TBEA Group e China Machinery Engineering teve repercussão negativa entre as concorrentes do setor nos Estados Unidos, que ficaram de fora dessa parceria.

“As empresas que queiram industrializar nosso lítio serão bem-vindas, desde que empregando e produzindo na Bolívia. Nós queremos produzir nossas baterias bolivianas para podermos exportá-las, obtendo mais uma alternativa para a economia boliviana”, explicou Arce, em entrevista à veículos de imprensa brasileiros.

Carlos Mesa (Comunidad Ciudanana/Comunidade Cidadã)

Já na campanha do ano passado, o programa do ex-presidente Mesa – que pertence à direita tradicional e apoiou o golpe de 2019 – inclui um capítulo especial sobre a gestão do lítio. O metal é descrito no texto como a “última fronteira extrativista e a primeira fronteira verde da história econômica da Bolívia”.

Em linhas gerais, o candidato propõe a inserção da Bolívia na cadeia global de valor do lítio, o que significa submeter o metal às flutuações do mercado financeiro – na Bolsa de Xangai, na China, e na Bolsa de Metais de Londres, no Reino Unido.

Para o economista Abraham Pérez, que analisou o capítulo do lítio no programa de Mesa em 2019, as propostas representam uma “privatização disfarçada”.

Luis Fernando Camacho (Creemos/Acreditamos)

Ex-líder do Comitê Cívico de Santa Cruz e um dos agentes do golpe de 2019, Camacho também é evasivo nas propostas sobre a gestão do lítio. O candidato reconhece a necessidade de investimento público para reativação da economia pós-coronavírus, mas propõe como carro-chefe da economia a reaproximação com os Estados Unidos, após “14 anos de distanciamento” – em referência ao período do governo Morales.

Camacho afirma que essa reorientação na política internacional ajudará a Bolívia a encontrar parceiros internacionais para explorar o lítio “em condições vantajosas”.

Antes e depois de Áñez

Desde que assumiu a presidência interinamente, após o golpe, a ex-senadora Jeanine Áñez freou as negociações com Alemanha e China para industrialização do lítio, mas não propôs soluções alternativas. Ela pretendia ser candidata nas novas eleições bolivianas, mas desistiu “para não dividir a direita” – sua chapa tinha cerca de 10% das intenções de voto e aparecia em 4º lugar.

Na contramão da tendência de mudança na matriz energética, em que o lítio seria protagonista, a campanha de Áñez tratava o tema de maneira vaga. “O desafio é superar a dependência do extrativismo e diversificar a economia, mudando o papel do Estado”, disse o então candidato a vice, o empresário Samuel Doria Medina, derrotado três vezes consecutivas por Evo Morales nas urnas.

O programa de Áñez citava ainda a necessidade de se ampliarem os incentivos fiscais para estimular investimentos privados nacionais e estrangeiros. A candidata mencionou em entrevistas à imprensa local que pretendia “melhorar” o projeto de exploração industrial do lítio no sul da Bolívia, sem especificar quais mudanças seriam necessárias.

A avaliação do MAS é de que o objetivo da direita boliviana ao suspender parcerias com empresas alemãs e chinesas é entregar o lítio “de bandeja” para os Estados Unidos, consolidando uma reorientação na política externa do país.

Assim como Jeanine Áñez, os candidatos Camacho e Mesa não descartam táticas como redução de impostos para atrair investimentos externos. Essa estratégia é o oposto do programa do MAS, que pretende manter o imposto adicional de 32% sobre os hidrocarbonetos. Na avaliação de Arce, o interesse estrangeiro sobre os minerais bolivianos é tão grande que qualquer isenção seria desnecessária e representaria uma afronta à soberania nacional.

Edição: Rodrigo Durão Coelho

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