“Caça ao javali” é usada como álibi para milicianos bolsonaristas adquirirem armamento pesado, diz Ivan Valente

Caça ao javali vira pretexto para grupos se armarem, inclusive com fuzil. O teste psicológico pode ser feito pela internet. “Se a pessoa não for louca, consegue passar.” Com o CR (certificado de registro), que leva três meses para sair, o caçador pode encomendar o armamento.| imagem reprodução do FANTÁSTICO


PROGRESSISTAS POR UM BRASIL SOBERANO

O deputado Ivan Valente alertou para a matéria do Fantástico sobre a farsa da prática que serviu de pretexto para a emissão de licenças para caçadores, mais que triplicando no governo Bolsonaro: Em 2 anos e 8 meses de gestão, foram concedidos 193.539 certificados de registro, o que representa aumento de 243% em relação aos 56.400 emitidos entre 2016 e 2018

“GRAVÍSSIMO”, escreveu o deputado federal Ivan Valente (PSOL-SP) em seu perfil do Twitter alertando para a matéria do programa Fantástico, da Rede Globo, exibido neste domingo (19).

“Farsa da“caça ao javali” é denunciada e escancarada”, postou o parlamentar. “Esquema dos CACs (caçadores, atiradores, colecionadores) é álibi para milicianos bolsonaristas adquirirem armamento pesado”, disse.

O congressista acrescentou que “são delinquentes golpistas com apoio de ‘Dudu Bananinha’. Cadeia neles!”

A matéria mostrou, conforme postada também no G1, que o ritmo de emissão de licenças para caçadores mais que triplicou durante o governo do presidente Jair Bolsonaro, de acordo com levantamento da mídia de notícias em parceria com o Fantástico.

Em 2 anos e 8 meses de gestão, de janeiro de 2019 a agosto de 2021, o Exército concedeu 193.539 certificados de registro (CRs) para caçadores no Brasil. É um aumento de 243% em relação aos 56.400 emitidos entre 2016 e 2018.A caça é proibida no Brasil.

A única exceção é o javali. Desde 2013, a legislação autoriza o manejo do animal – ou seja, o abate para evitar que se reproduza de forma descontrolada, contamine rebanhos de porcos e destrua plantações. E desde que o animal não sofra maus-tratos.

Hoje existem cerca de 250 mil caçadores legalizados no país. Como só o manejo do javali é autorizado, todas essas pessoas só têm permissão para abater este animal.

Investigação do Fantástico mostra que pessoas estão usando o manejo do javali como pretexto para se armar e praticar a caça esportiva, o que é proibido.

A equipe de reportagem descobriu que o CR é oferecido por despachantes e clubes de caça ao redor do país, sem necessidade de saber usar armas ou ter problemas com javali.

O teste psicológico pode ser feito pela internet, diz. “Se a pessoa não for louca, consegue passar.” Com o CR, que leva três meses para sair, o caçador pode encomendar o armamento.

A liberação da caça é uma das promessas de campanha de Jair Bolsonaro. Desde que ele assumiu a presidência, o governo federal já publicou 37 decretos, portarias e projetos de lei que facilitam o acesso a armas e reduzem a fiscalização dos Colecionadores, Atiradores e Caçadores (CACs). A Justiça barrou várias dessas medidas.

Vários beneficiaram diretamente os caçadores, como o decreto que permite a eles a posse de 30 armas, sendo 15 de uso restrito, como fuzis.

Cada caçador pode comprar também até 90 mil munições por ano. Para ter uma ideia, isso permite dar 246 tiros por dia, todos os dias do ano.

“Haja javali para que todos esses tiros sejam gastos com esse manejo”, diz Ivan Marques, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. “É mais uma razão para essa atividade ser bem regulada e bem fiscalizada. Coisa que hoje nós sabemos que não acontece.”

Antes de ir atrás do javali, o caçador também precisa do certificado de registro das armas de fogo e de autorizações do Ibama e do dono da fazenda que estaria tendo prejuízo por causa do animal.

Com a guia de tráfego, outro documento expedido pelo Exército, o caçador fica liberado para transportar armas e munições até os locais de manejo.

“Você pode ir do Rio Grande do Norte até aqui no Rio Grande do Sul. Onde tiver javali, você pode ir. Não tem problema nenhum”, afirma um despachante.

A equipe de reportagem descobriu que vários caçadores que vivem nas cidades vão para o interior só para atirar. Iniciantes chegam a gastar até R$ 100 mil num kit, que inclui documentação, viagem, cachorros, roupas temáticas, armamentos e munição.

“Um problema que deveria ser concentrado ao campo, em determinadas regiões específicas, e que acaba gerando um salvo conduto, uma verdadeira possibilidade de liberação de armas para aquele que se cadastra como caçador”, diz Marques, do FBSP.

Expansão dos javalis e caça esportiva

Não existem estatísticas sobre a quantidade exata de javalis no Brasil ou o prejuízo que causam. Mas os especialistas são unânimes em dizer que a espécie deve ser controlada.

A caça deveria ser um dos principais métodos de controle, mas o aumento do número de caçadores não está se refletindo em uma redução dos javalis no país. Pelo contrário. O animal só está se espalhando.

Em 2016, havia javalis em 563 municípios brasileiros, segundo levantamento do Ibama. Em 2019, o número quase triplicou. Os animais apareceram em 1.536 municípios.

Em vez de controlar a expansão do animal, alguns caçadores estão, inclusive, espalhando o javali pelo país de forma ilegal.

O ritmo de expansão do javali no Brasil é bem maior que o registrado em países vizinhos. É 11 vezes maior que o do Uruguai, por exemplo, por onde a espécie foi introduzida no país.

Muitas licenças, poucos abates

Só entre janeiro e agosto deste ano, já foram emitidos 75.289 CRs de caçador. Mesmo antes de terminar o ano, já é um recorde. Mais do que em qualquer um dos últimos cinco anos completos.

Dados obtidos via Lei de Acesso à Informação mostram que as licenças são concedidas mesmo em áreas em que o registro de abates é muito baixo.

Na área da 7ª Região Militar, por exemplo, que engloba os estados de Alagoas, Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte, o Exército concedeu 1.981 CRs de caçadores em 2020. Segundo relatórios do Ibama, foram abatidos apenas 10 javalis naquela região no ano passado.

O mesmo acontece na 12ª RM (Amazonas, Acre, Roraima e Rondônia). Foram emitidos 1.864 CRs e abatidos 6 javalis.

Na 2ª RM, de São Paulo, um dos locais mais afetados pela praga, foram emitidos 10.411 CRs e abatidos 17.244 javalis.

Armas e política

A caça de javalis se tornou um fenômeno cultural, com grupos organizados, clubes e influenciadores em redes sociais. Uma das figuras mais influentes nesse meio é Mardqueu Silvio França Filho, vereador do PSD e presidente da Câmara Municipal de Monte Azul Paulista, no interior de São Paulo. Ele é mais conhecido como Samurai Caçador.

“O javali veio assegurar o direito de uso de armas para nós. Nós temos que usar o subterfúgio de utilizar a palavra manejador”, afirmou ele nos mês passado durante palestra em um evento de armas em Santa Catarina.

Nas manifestações do dia 7 de Setembro, Samurai subiu em carro de som e fez discurso na Avenida Paulista.

“Vamos tirar todos esses malditos que querem fazer desse Brasil uma ditadura. Nenhum ‘mardito’ vai ficar contra o povo.”

Ao ser entrevistado, ele mudou o tom. “Não precisamos de nenhum subterfúgio. Nós já estamos com o CR, já estamos com as nossas armas, independente da existência do javali ou não. Nós estamos fazendo uma contribuição valorosa ao estado e à população.”

Samurai se diz amigo do deputado federal Eduardo Bolsonaro, que já participou de caçada e é um dos maiores defensores da política armamentista do governo.

Eduardo é aliado do advogado Marcos Pollon, o presidente da Associação Nacional Movimento Pró Armas (Proarmas). Em uma palestra no começo do mês, Pollon afirmou:

“O direito à legítima defesa, meus amigos, é um direito natural. Você reage à instrumentalização do país. Você reage à Corte que está querendo destruir o país. Temos que reagir. Não temos tempo nem espaço pra ter medo.”

No fim de agosto, Eduardo Bolsonaro e Marcos Pollon foram recebidos em audiência por Silvinei Vasques, diretor-geral da Polícia Rodoviária Federal (PRF). Os dois pediram mudanças na fiscalização dos CACs.

Dois dias depois do encontro, a PRF emitiu uma nota técnica com novas orientações para a abordagem de CACs que estejam nas estradas.

O Fantástico conversou com vários policiais rodoviários federais que disseram que esta nota técnica inviabiliza uma fiscalização mais rigorosa dos CACs. Segundo esses policiais, é praticamente uma ordem para deixá-los seguir viagem.

A nota ainda permite que caçadores se desloquem para o local do manejo com arma curta carregada – pronta para atirar – independentemente do horário e itinerário.

Juristas dizem que isso vai contra uma decisão da ministra do STF Rosa Weber, que em abril suspendeu por liminar vários trechos de decretos do governo federal que facilitaram a compra de armas, entre eles o que permitia que caçadores andassem com arma carregada.

O Fantástico procurou Eduardo Bolsonaro, Marcos Pollon, o Ibama, o Exército e a direção da Polícia Rodoviária Federal, mas eles não responderam.

Ameaça à segurança pública

“A gente tem um problema muito sério sendo criado, em termos de segurança pública”, afirma Melina Risso, do Instituto Igarapé.

“Quanto mais armas em circulação, maior a violência. Aumento sem controle, na verdade, é uma receita pro desastre.”

Ao todo, existem hoje mais de 670 mil armas registradas nas mãos dos CACs.

Segundo Melina, este tipo de facilitação pode acabar gerando grupos armados, paramilitares, no Brasil.

“Você abre a perspectiva de que isso aconteça. A gente tem de fato uma preocupação muito grande em relação à quantidade de armas e efetivamente quem são esses grupos que estão se armando.”

Atualmente, há 77.821 armas registradas por caçadores no país, sendo 80% espingardas, carabinas ou fuzis.

“Vamos imaginar um dia em que o javali não seja mais um problema no Brasil. O Exército vai recolher essa arma? Vai retirar a licença dessas pessoas? Ou seja, o Brasil vai criando situações em que acaba sendo muito difícil voltar atrás”, afirma Ivan Marques, do FBSP.

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